quinta-feira, 26 de março de 2009

O mundo não vai virar à esquerda











Como quem escreve não deve ter medo de correr riscos, arrisco: o mundo não vai mudar à esquerda. A interrogação resulta de quatro evoluções recentes: a eleição de Obama, o suposto "fim do neoliberalismo", o reforço da intervenção do Estado na economia, e a subida da extrema-esquerda, de inspiração marxista, nas sondagens em muitos países europeus.

Comecemos pelo último ponto, o menos relevante de todos. O crescimento da esquerda radical, acabará por enfraquecer a esquerda. A natureza reaccionária do seu pensamento impede-a de se tornar numa alternativa viável de governo. Pior do que isso, dada a atracção ideológica dos seus argumentos para muitos membros da esquerda moderada, irá contribuir para atrasar o ajustamento doutrinal dos socialistas democráticos aos desafios colocados pela globalização. A confusão e as divisões daí resultantes irão ajudar muitos partidos de centro-direita a ganhar eleições.

A eleição de Obama como Presidente dos Estados Unidos é bem mais importante. A coligação social que o levou à Casa Branca trouxe ao poder (num sentido mais alargado, e não apenas em termos de governo) sectores da sociedade norte-americana até aí afastados de ‘Washington'. Neste sentido, assistiu-se a uma mudança importante nos Estados Unidos. Convém, no entanto, não exagerar. Falar de uns Estados Unidos "sociais-democratas" é manifestamente um exagero. Há um ano atrás, os mesmos que celebram agora a "social-democracia" americana, referiam-se com preocupação aos "valores conservadores" dos norte-americanos e ao seu extremo apego ao "capitalismo". Estas características nacionais e culturais não desaparecem com uma eleição presidencial. Desconfio que esta crise não irá enfraquecer o conservadorismo ou a economia de mercado nos Estados Unidos.

O "fim do neoliberalismo" é um chavão fácil, com fins ideológicos; não é uma explicação da realidade. Pretende-se utilizar o fracasso de um sistema financeiro mal regulado para atacar a economia de mercado. É bem mais difícil construir uma alternativa que garante a prosperidade económica e a justiça social da maioria dos cidadãos. A correcção e a reforma da economia de mercado são dois dos grandes desafios do início do século XXI. Outro é o modo como se lida com a globalização. Esta crise marca também o reforço do poder do mundo não-ocidental, especialmente da Ásia. Esta transformação global vai afectar, irremediavelmente, o modelo económico e social do capitalismo ocidental e europeu. Os partidos políticos, à esquerda e à direita, devem encontrar respostas para estas questões. Quem o fizer passará, nos próximos anos, mais tempo no governo. Até agora, ainda não vi algum sinal que indique que a esquerda está melhor preparada para o fazer.

Quanto ao peso do Estado na economia, não é sinal de viragem à esquerda, mas de pragmatismo e urgência em tempo de crise. Além disso, a identificação entre intervenção estatal na economia e esquerda diz-nos apenas parte da verdade. Há fortes tradições na direita que sempre defenderam o dirigismo económico. O aumento da intervenção do Estado na economia não beneficia naturalmente a esquerda. Tradicionalmente, uma certa direita sempre se deu muito bem nestes terrenos estatais. A questão central não é saber se o mundo está a virar à esquerda, mas perguntar quais serão as esquerdas e as direitas que sairão desta crise?


Autor: João Marques de Almeida, Professor universitário
Fonte: Diário Económico

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